No mais profundo dos teus olhos – uma história sobre padrões, culpa e libertação

Uma história sobre padrões, culpa e libertação

Olhar profundamente nos olhos de quem amamos pode revelar mais sobre nós do que imaginamos. Nesta história, partilho o momento em que alguém compreendeu como anos de tentativas de salvar o outro tinham moldado a sua própria insegurança.

Olhei-o nos olhos. O tempo suspendeu-se. Nesse instante, como se a luz tivesse abrandado, senti uma clareza cortante: algo maior estava a revelar-se.

Uma voz, vinda das entranhas do meu ser, sussurrava: “não vale a pena… deixa, não vale a pena.”

À minha frente, o meu Pai permanecia naquele lugar de dor, como tantas vezes anteriormente. Todos os meus argumentos, todas as minhas tentativas de lhe mostrar outros ângulos, batiam contra uma parede de cimento. Ele queria estar ali, mergulhado na tristeza, na apatia, no papel de vítima.

Quando entrei em casa, há duas horas, vi logo os olhos vermelhos, parados, perdidos. Soube, antes de ele falar, que havia sofrimento. O carro tinha avariado. A reparação era cara. E esse foi o detonador de uma cascata conhecida:

  • “não sei para que é isto tudo”
  • “não faço nada de jeito”
  • “falhei como Pai”
  • “ninguém fica ao meu lado”

Tudo se somava. Tudo se afundava no mesmo mar de mágoa.

E eu, como sempre, tentei puxá-lo para a superfície. Mostrei-lhe o valor, lembrei-lhe momentos, tentei que visse além da dor. Mas nada mudou. Tal como tantas vezes antes, a vitimização cobria tudo.

Olhei-o profundamente, demoradamente. E senti a frustração crescer no peito. A impotência também.

Toda a minha vida fora assim. Desde que me lembro, ocupei-me procurando tirá-lo desses estados, acreditando que me cabia a mim aliviar a sua dor. E, em cada falhanço, construí dentro de mim a insegurança. Cada vez que não conseguia, nascia em mim o peso de ser insuficiente.

Foi ali, naquele instante suspenso, que compreendi.
Compreendi que, ao longo dos anos, tinha transformado a frustração em autodesvalorização. Que cada tentativa falhada de o salvar se tinha inscrito em mim como incapacidade, como culpa.

Olhei para trás e vi: essa aprendizagem moldara toda a minha vida. No trabalho, o medo constante de falhar. Nas relações, a tentativa vã de salvar quem amava. Na comparação com os outros, a sensação de nunca estar à altura.

Olhei-o profundamente. E olhei-me também.

Compreendi que a minha tentativa de o poupar ao sofrimento apenas perpetuara o seu papel de vítima. E compreendi, no mais recôndito do meu ser, que já não queria carregar essa tarefa impossível.

Pela primeira vez, em vez de tentar salvar, respirei fundo. Senti compaixão — por ele e por mim. E nesse instante nasceu em mim a possibilidade de fazer diferente.

Talvez também reconheça algo nesta história.
Talvez carregue culpas que não são suas, tentando salvar quem ama. Talvez tenha aprendido a olhar-se como insuficiente sempre que não consegue mudar o outro.

Se assim for, lembre-se: não é falhanço. É apenas um padrão. E padrões podem ser compreendidos, suavizados, libertados.

Olhei-o. Olhei-me.
E compreendi.

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